quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

"A droga teoricamente é ruim, mas em um mundo ruim é algo bom se você sacar a polaridade invertida disso. Isso gera equilíbrio. Em um mundo fodido, você tem que ser fodido ou você acaba caindo." - Resenha do livro "Selvagens" - Don Winslow

Durante um breve período tivemos uma civilização que se aferrou a uma estreita faixa de terra entre o oceano e o deserto. Nosso problema era a água: em excesso de um lado, mais escassa do outro, mas isso não nos deteve. Construímos casas, rodovias, hotéis, shopping centers, condomínios residenciais, estacionamentos, edifícios - garagem, escolas e estádios.

Proclamamos a liberdade do individuo, compramos e dirigimos milhões de carros para provar isso, construímos mais estradas nas quais dirigir os carros para podermos ir a toda parte que era parte alguma. Regávamos nossos gramados, lavávamos nossos carros, engolíamos garrafas plásticas de água para nos mantermos hidratados em nossa terra desidratada.

Erguemos templos as nossas fantasias, estúdios cinematográficos, parques de diversão, catedrais de cristal, megaigrejas e os frequentávamos em rebanhos.  Íamos a praia, pegávamos onda e jogávamos nosso lixo na água que dizíamos amar.

Reinventávamos-nos todo dia, refizemos nossa cultura, nos trancamos em comunidades fechadas, comíamos alimentos saudáveis, paramos de fumar, erguíamos o rosto ao mesmo tempo que evitávamos o sol, fizemos peeling, retiramos nossas rugas, sugamos nossa gordura da mesma forma que fazemos com nossos bebes indesejados, desafiamos o envelhecimento e a morte.

Fizemos da riqueza e da saúde duas deusas. Uma religião do narcisismo.

Comecei a resenha desta maneira, não porque tenho o desejo de pregar sermões e ganhar seu voto na próxima eleição, mas porque Selvagens, livro de Don Winslow, fala justamente de um mundo corrompido, onde a carne é fraca e apenas a alma sobrevive. Será que sobrevive mesmo?

Vamos ao livro: Ben e Chon são amigos e parceiros de negócios. Como todo bom jovem morador de Orange Country, ambos curtiam festas, sexo e um bom e velho conhecido baseado. Porém, como acontece com todos uma hora ou outra, eles sentiram necessidade de ganhar dinheiro, e decidiram fazer do ditado "Faça o que ama e nunca trabalhará um só dia na vida" um lema. Foi desta maneira que começaram a plantar e produzir a melhor erva do mundo.

Ben é um pacifista convicto e vive dentro de uma ambiguidade tremenda. Ao mesmo tempo que embolsa milhões vendendo droga, não aceita a violência que envolve o mundo do tráfico, e basicamente utiliza todo seu dinheiro viajando o mundo auxiliando pobres e oprimidos e adquirindo febre amarela de brinde.
Já Chon, um ex mercenário, não é tão iludido, ele sabe muito bem que nesse negócio não há como escapar ileso da violência.

Ter seu próprio negócio é uma faca de dois gumes. Se você não ganha dinheiro, é considerado um fracassado e não possui a veia empreendedora como costumam falar por aí em sermões de liderança. Porém, se você ganha muito dinheiro, começa a incomodar muitas pessoas. E foi desta maneira que Ben e Chon iniciam um eletrizante jogo de espertezas, ou melhor dizendo, uma guerra sanguinolenta pelo poder.

O Cartel de Baja, com sede em Tijuana, exporta um volume imenso de drogas para os EUA e quer controlar todo o mercado de maconha da Califórnia. Como a erva de Ben e Chon é a melhor da região, o cartel fará de tudo para que a dupla trabalhe para eles, e não aceitará uma negativa como resposta.

Quando os rapazes se recusam a aceitar a oferta, o cartel resolve trabalhar em cima da fraqueza dos dois jovens, é aí que entra nossa bela e amalucada protagonista, "O". Na verdade seu nome é Ophelia, mais ela é citada como "O" porque ela gosta tanto de sexo, que seus orgasmos são sempre "O´s" contínuos e prolongados. Ophelia, além de amiga, é amante de Ben e Chon, que não se incomodam nem um pouco em dividir a loira, alias, os três vivem felizes dentro de um relacionamento livre dos obstáculos morais. Que selvageria, concordam?

Vamos justamente falar sobre "selvageria". Em paralelo ao triangulo amoroso, temos Elena, a mandante do Cartel, que não gosta nem um pouco de derrubar sangue, mas é a única capaz de ter "sangue frio" para lidar com a violenta realidade do mundo das drogas. Seus irmãos, antes donos do negócio, faleceram, e Elena não teve outra escolha se não aceitar comandar o negócio da família. Junto com ela, temos Lado, um inescrupuloso guardião de toda a operação do Cartel. Junto com Elena, Lado investiga a vida de Ben e Chon, e abismado com o relacionamento que ambos mantém com "O", arma o sequestro da mesma, e ameaça por videos, corta-lhe a cabeça. Agora volto a perguntar, quem é mais selvagem nessa história toda?

Junto a esses instigantes personagens, temos por último, Dennis, um policial corrompido, que vive a custa de propinas,e passa informações tanto para os dois jovens portadores da melhor erva da Califórnia, quanto ao poderoso e violento Cartel de Baja. Já imaginaram que a confusão toda começa quando Dennis resolve botar a radio peão para funcionar, e literalmente permitir voar merda para todos os lados. (Me desculpem o palavreado, mas não consigo escrever sobre um cenário tão sanguinolento, sem ser um pouco evasiva).

Don Winslow escreveu sim, um romance (Já explico o porquê). A narrativa da obra é um tanto quanto peculiar. A trama é narrada em terceira pessoa, mas não de uma forma linear. Para o leitor, nos perdemos um pouco achando que ora é um dos personagens que está narrando a história, e ora aparenta ser um mero observador externo. Assim como Oliver Stone, que fez o livro virar filme, a história acaba se tornando concisa sem ser simplista. Alias, nem um pouco simplista. Encontramos frases diretas, irônicas e recheadas de humor negro. Prepare se para entrar em uma leitura de linguajar despojado e muitas vezes ordinário, um cenário perfeito para a atmosfera de submundo do crime.

Voltando ao romance (ops, romance?). Sim. Você já deve ter lido, visto ou ouvido falar de Romeu e Julieta? Pois bem, o final é marcado por uma denúncia de amor verdadeiro em meio a um mundo de belos selvagens.

O que é ser selvagem afinal? Doidos são pessoas normais ou pessoas normais são doidas? Eis que chego finalmente a reflexão do livro. Levando em conta a personalidade dos personagens, acompanhamos ao longo da leitura a transformação de sua então considerada selvageria em um final estupidamente surpreendente. Se em um mundo corrompido, nossa alma é a que sobrevive, porque agimos da forma que agimos, se não por um sentimento que vem de dentro da própria alma? Uma mãe é capaz de matar se ver o seu filho sofrendo, então como explicar uma atitude considerada selvagem, quando se é capaz de matar o próximo e a si mesmo por amor?

No final das contas, idolatramos a nós mesmos fazendo esse tipo de reflexão, mas também agimos sendo selvagens até mesmo no mais nobre dos sentimentos.

Já dizia o poeta Renato Russo: "Nosso suor sagrado, é bem mais belo que esse sangue amargo, é tão sério e selvagem. Nem foi tempo perdido, somos tão jovens".

"Vamos viver na praia e comer os peixes que apanharmos. Colheremos frutas frescas e subiremos em coqueiros. Dormiremos juntos em esteiras de palha e faremos amor. Como selvagens. Belos, belos selvagens".

Minha nota: 10



Para quem quiser ver as letras desse livro desenhadas em uma tela, segue trailer da obra de Oliver Stone, pra mim um magnifico e selvagem diretor:

http://www.youtube.com/watch?v=KC2zbOwbeEs

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

"Soube então, que a vida não respeitava circunstâncias...A vida simplesmente vai em frente e faz o que tem vontade, sempre que tem vontade!" Resenha do livro "Sushi" - Marian Keyes

Aquele velho e conhecido clichê de "A vida é uma caixinha de surpresas", passou mais uma vez em minhas mãos ao ler o livro da minha atual autora preferida, Marian Keyes.

Para melhor ilustrar a ideia, vou falar primeiro dos personagens que compõe está instigante história: Lisa Edwards é uma durona e sofisticada editora de revistas, que acha que sua vida acabou quando descobre que sua tão esperada promoção profissional não é gerenciar uma revista de grife em Nova York, e sim encarar a missão de lançar uma revista chamada "Garota" na pacata e sem noção cidade de Dublin.

Para compor a história de Lisa, temos Ashling Kennedy, a editora assistente da "Garota". Extremamente ansiosa, possui um passado familiar um tanto quanto perturbador. Sua melhor amiga, Clodagh, tem tudo o que uma garota sonha em ter, casada com um homem lindo e cobiçado, têm dois filhos encantadores e vive dentro de seu castelo de contos de fadas particular, sendo extremamente invejada por todos, menos por ela mesma, que acha que sua vida não passa de uma pacata rotina sem aventuras e sem nada de emocionante para fazer e sentir.

Aí você deve estar se perguntando porque raios o livro leva o nome de "Sushi". Em determinado momento da história, em um momento de grande agitação, eu diria, ocorre o seguinte dialogo:

"- Hoje eu vou querer uma coisa um pouquinho diferente para o almoço - disse Lisa a Trix.
- É alguma fruta que você quer?
- Gostaria de comer sushi.
A sugestão era tão repugnante que deixou Trix sem fala.
- Sushi? - disparou, por fim, horrorizada. Quer dizer, peixe cru?"

O alvoroço é tanto, que o sushi vira uma mística metáfora para posteriormente nossas três protagonistas encontrarem em suas experiências a tão cobiçada felicidade.

Já li muitos livros de Marian Keyes e diria que esse é o menos cômico de todos. Em minha opinião, a sensação é que deve ter sido um de seus primeiros livros, e sua real identidade como autora veio muito tempo depois com suas outras obras, que sempre carregam uma característica de humor ácido junto com historias de vidas de mulheres surpreendentemente parecidas conosco. Mais não posso negar que Sushi tem sua cota de peculiaridade quando têm como objetivo mostrar que nem sempre as coisas saem da forma que imaginamos, mas no final das contas carregam em si o real aprendizado para uma vida de fato realizada.

Lisa vê em sua mudança para Dublin e seu divórcio com seu ex marido a chance de se tornar uma pessoa menos mesquinha, mais sensível e capaz de enxergar nas pequenas coisas o que realmente faz a diferença no dia a dia, como por exemplo, a valorização do amor de uma mãe e de um pai, de um companheiro e o quanto cada peso e medida devem ser compostos de forma equilibrada quando falamos de vida pessoal e profissional. Já Ashling não possui amor próprio nenhum, e aprende com dois relacionamentos fracassados que querer ser outra pessoa não vai a levar a lugar nenhum. As vezes o amor pode se encontrar em lugares que nem fazíamos ideia de que estaria lá. De mais a mais, já é o segundo livro da autora que aborda o tema depressão. Ashling possui uma mãe que sofreu muito tempo da doença e a mesma cresceu de forma traumática, descobrindo em sua própria depressão anos depois o significado da verdadeira redenção. A vida é mesmo uma figura engraçada, concordam?

Por fim e não menos importante (alias, em minha singela visão, a personagem mais importante do livro), temos Clodagh e sua crise existencial por levar uma vida tão insignificante, e carregar o peso de ser invejada por todos aos seu redor porque simplesmente ela parece perfeita, quando na verdade seu interior grita constantemente pela busca de algum sentimento verdadeiro.

James Baldwin costuma dizer que "O amor arranca máscaras sem as quais temíamos não poder viver e atrás das quais sabemos que somos incapazes de o fazer".

Sushi não só mostra como nada na vida nos acontece por acaso, como também prova que todos somos seres suscetíveis a entrar em colapso nervoso. Até aquela pessoa que parece ser a mais perfeita à que parece a mais problemática, podem sim se enfiar debaixo de uma coberta e não querer sair nunca mais para encarar a dura e modesta vida lá fora. Aí eu me pergunto, você que está lendo essa resenha, quem nunca passou por isso? Eu já quis esquecer meus problemas e viver o resto da minha vida protegida no meu edredom macio e fofinho.

A vida não respeita nossas circunstâncias, ela faz o que têm vontade, chega sem hora marcada, mas deixa uma enorme sensação de dever cumprido. Esse visitante que mais parece um intruso, nos traz presentes que se auto intitulam de oportunidades.

Fica a dica: aceite esse presente, porque mesmo que ele não pareca a primeira vista aquilo que você queria ganhar, ele pode ser bem útil no futuro, eu diria até que indispensável.

Minha nota: 7,5