sexta-feira, 11 de julho de 2014

"O passado não me ofusca, nem o futuro. Concentro-me no presente, porque é nele que estou destinado a viver" - Resenha do livro "Todo dia" - David Levithan

"Nunca vou ter uma fotografia dela para levar no bolso. Nunca vou ter uma carta com a letra dela, nem um álbum de recortes com tudo que fizemos. Nunca vou dividir um apartamento com ela na cidade. Nunca vou saber se estamos ouvindo a mesma canção na mesma hora. Não vamos envelhecer juntos. Não vou ser a pessoa para quem ela liga quando tem problemas. Ela não vai ser a pessoa para quem vou ligar quando tiver histórias para contar. Nunca vou conseguir guardar nada que ela me deu. Apenas digo adeus enquanto a observo dormir. Fecho os meus olhos, e também adormeço".

É desta maneira que vive A, um garoto ou uma garota de 16 anos que todos os dias vive uma vida diferente em um corpo diferente por exatas 24 horas, até pular para o próximo corpo e para a próxima vida. Não há uma definição clara do que A seria: um humano, um espírito, um alienígena ou uma entidade. Na verdade, o que menos importa é saber o que é A, e sim, entender que, sendo o que ele for, ele é capaz de sentir. E porque não sentir o sentimento mais nobre de todos? O amor?

A é assim desde a sua existência, embora ele só tenha memórias a partir de quando era criancinha, como nós mesmos, afinal, é difícil alguém se lembrar de algo quando era bebê.  Conforme os capítulos se desenrolam, vamos entendendo melhor a vida de A, e a forma como ele lida com a sua suposta missão, qual o seu papel em um universo tão complexo chamado vida. Ele não têm a menor ideia do porquê é assim, e também nunca se questionou muito a respeito disso, apenas sofreu como qualquer pessoa sofreria de não ter uma mãe, um pai ou irmãos para chamar de seu, nem o seu próprio guarda roupa,  nem seu estilo musical preferido, nem os seus melhores amigos, nem o seu livro preferido ou suas próprias manias, qualidades ou defeitos.

O que A aprendeu ao longo de seus 16 anos foi não interferir na vida das pessoas que tiveram seus corpos habitados por ele durante 24 horas. Ele apenas acorda, acessa as memórias mais relevantes do corpo para saber do que precisa para passar o dia, e continua apenas vivendo. Ele segue a risca o ditado "Cada ação, uma reação", e procura se abster de qualquer atitude que possa gerar conflito na vida daquele corpo quando no dia seguinte ele já tiver ido embora.

Tudo muda de cenário quando A acorda no corpo de Justin, e conhece sua namorada, Rhiannon. Quando Justin, ou melhor A, a encontra em uma rotina normal do casal, ele percebe nela uma grande tristeza, e a enxerga profundamente, diria que exatamente quem é a sua pessoa. Não é como estar dentro do corpo dela e acessar suas memórias mais relevantes, mas sim, entender do que é feito a pessoa de Rhiannon, porque ela é quem é. Seus detalhes físicos são deixados de lado, porque para A, o exterior nunca foi algo importante, ele mesmo não possui uma forma, mas sim uma alma, ele é ele de uma maneira sem definições físicas, e é exatamente desta maneira que ele enxerga Rhiannon, quando a vê pela primeira vez. E o resultado disso, é o nascimento de um sentimento que ultrapassa barreiras e acaba com paradigmas e esteriótipos, o velho e bom conhecido amor. Dizem que o amor só é verdadeiro quando não vemos, e sim quando enxergamos o outro. Começo a não mais duvidar disso.

Deste dia em diante, A deixa a prudência de lado e a regra silenciosa de não interferir na vida de ninguém, e começa uma busca incessante para conquistar o coração de Rhiannon, mesmo não sendo a mesma pessoa fisicamente todos os dias.

O livro tem tudo para ser piegas e mais uma história de amor impossível, mas garanto, ele não é. A forma como o personagem de A é desenvolvido e o mistério que o ronda, que pasmem, mesmo chegando ao final do livro, ainda não fica claro quem ele é ou o porquê ele é desta maneira, acaba não se tornando o foco principal da obra. Não existe uma explicação cientifica, espiritual, mítica ou magica por detrás de A. Você simplesmente conhece A, e pronto. O fantástico desta história é perceber que a vida é muito mais do que imaginamos. Foi incrível conhecer tantas pessoas e vidas diferentes, e como A lida com todas elas. Ele já foi gay, jogador de futebol americano, a garota mais popular da escola, lésbica, drogado, depressivo, suicida, uma pessoa normal com uma família abusivamente feliz, um nerd, um poeta, um cristão fanático, um ateu e etc. A é um ser fantástico porque é totalmente desprovido de preconceito. É algo, ou mesmo alguém, que todo ser humano deveria tentar ser. Lendo a obra de David Levithan me lembrei de uma citação de Luiz Gasparetto: "Enfrentar preconceitos é o preço que se paga por ser diferente".

A história de amor entre os dois adolescentes e as formas que A encontra de ser honesto com Rhiannon e provar a ela que ele é ele mesmo em essência e não em corpo físico, não é a grande lição deste livro e nem o enredo principal da trama. Para mim, a verdadeira mensagem está por trás da forma como cada ser humano possui um valor insubstituível e imensurável com suas experiencias e suas expectativas em relação ao verdadeiro e grande mistério, a vida.

Ser humano é algo incrível. Não quero dizer o "ser humano", mas sim, ser um humano. Viver neste mundo pela ótica da espécie mais evoluída do planeta terra. Isso é indiscutivelmente inenarrável. Ser humano é ter dentro de si teorias, teoremas, técnicas, pressupostos e até soluções. Para fazer andar a vida de uma forma que nos faça sentir uma capacidade, ainda que limitada de controlá-la. Mesmo sabendo que sem fazer nada, ela vai continuar andando. Mas, para onde? É por isso que a dirigimos, a direcionamos, para que desta maneira ela siga um rumo. Mas qual a linha final, afinal? Ser humano é acreditar nos relacionamentos interpessoais. Ser humano é ser movido por paixões, sentimentos e valores, e quando nada disso dá certo, vai por instinto mesmo, até muitas vezes, selvagem. Ser humano é viver dois mundos num só, cheio de zilhões de outros mundos de outros seres humanos. O mundo como ele é e o mundo como nós achamos que ele é, cada mundo, de cada ser humano, é único e inabitável por outro ser que não seja ele próprio. Todo mundo quer fazer parte do mundo do outro e que os outros façam parte do seu mundo. Não diziam na escola que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço? Passamos a vida em devaneios, acreditando na verdade das nossas mentiras e na certeza das nossas dúvidas. Ser humano é encontrar alguém especial, sentir algo especial por esse alguém especial, e fazer sexo de forma especial com esse alguém especial por quem se sente algo especial. É multiplicar seres especiais nesta mesma linhagem. Para os seres humanos, damos o nome de amor. Ser humano é ter esse tal amor dentro de si, fora de si, em volta de si, por baixo e por cima de si. Ser humano é ser capaz de contar o tempo em horas, contar a infância em series, contar a vida em realizações e prodígios. É ir contra a natureza dos fatos, dos atos, dos outros habitantes do planeta. É achar que o mundo precisa de nós, sem querer sequer pensar na hipótese de que somos nós que precisamos do mundo, pois é por causa dele que somos afinal, seres humanos.

A, entende profundamente o que é ser um humano, e toma a decisão derradeira de um verdadeiro ser aquém da humanidade incorrigível: o dom de amar verdadeiramente. A lembrança de um sentimento incompreendido pode valer mais do que o destino de um presente, de um passado deixado para trás e de um futuro construído com base no entendimento de uma identidade.

Essa é a grande lição.

Minha nota: 9,0

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